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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

WE’VE HAD ENOUGH


BASTA!



Por Andréa Luisa Bucchile Faggion


Meus amigos, vamos celebrar! 'We've Had Enough' (Tivemos o Bastante)! A maravilhosa 'We've Had Enough', não é mais um desabafo sobre o linchamento que Michael Jackson vem sofrendo nas mãos dos neoconservadores, falsos moralistas e fundamentalistas que detêm o poder na América. Embora seja universal, no atual contexto, ela é sim um desabafo sobre o que o mundo todo vem sofrendo nas mãos desses republicanos de Bush que tratam gente "esquisita" com algemas e bombas.

Como estamos falando de Michael Jackson, não espere a banalidade de versos como "nós queremos paz" ou "a América mente". A música mais política da carreira de Michael Jackson, sim esqueça 'They Don't Care About Us', não carrega bandeiras políticas explícitas ou levanta bordões anti-Bush. Michael Jackson é o contador de estórias do mundo contemporâneo. Como os sábios de séculos ou mesmo milênios atrás, ele faz sua crítica com parábolas e causos. Foi assim quando ele dançou seus sonhos em forma de livro, por exemplo.

Em 'We've Had Enough', ele nos leva a imaginar como um pai contaria a uma criança sobre a morte da mãe em um ataque militar, e vice-versa. Há algo mais simples e direto do que esse apelo? Há alguma ideologia que se sobreponha à crua constatação de uma vida interrompida, justificando momentos assim?

Como me disse em conversa nosso ex-diretor e meu amigo Alvaro Zanotti, estes versos que retratam inocentes pedindo uma explicação sobre a orfandade provocada pela guerra soariam piegas na boca de qualquer outro. Com Michael, eles soam dolorosamente humanos, fazendo-nos pensar, ou melhor, sentir como pudemos permitir que isso acontecesse. Esta é uma das funções de Michael Jackson no mundo: ele nos faz ver o que há de mais simples que, de tão óbvio, não percebemos mais; ele nos mostra que teorias complicadas e sofisticações intelectuais não valem de nada perante a dor nua e humanamente crua.

Fazer-nos imaginar uma garotinha perguntando a um oficial se Deus lhe disse que ele poderia decidir quem poderia viver e quem deveria morrer é o jeito de Michael de nos ensinar que nenhuma idéia vale uma vida, como diz explicitamente e, portanto, sem a mesma força, uma canção brasileira. É o jeito de um homem simples que olha para a vida sem as lentes das convenções, das ideologias, das fórmulas e das regras... É o jeito de um homem que nos toca por olhar o mundo simplesmente como ele é. A propósito, será que um dia vão entender que é só isso que ele quer dizer quando diz que temos a aprender com as crianças?

Dizem os estetas que a arte é sempre crítica, mesmo em um conto de fadas de chapeuzinho vermelho, porque a arte é, no mínimo, a criação de uma utopia, ou seja, de um mundo que não tem lugar, ao menos ainda, no mundo real. Portanto, mesmo o artista mais apolítico, ao criar seu próprio universo, sempre coloca outra possibilidade de mundo e, assim, questiona, ainda que involuntariamente, o mundo que de fato existe.

Mas ao criar o mundo de 'We've Had Enough', Michael certamente sabia o que estava fazendo e, desta vez, não colocou nenhuma utopia. O que faz de 'We've Had Enough' sua obra mais política é justamente a identificação entre o conto e o real no contexto atual. A música fala, sem se referir, de uma realidade que não é só de guerra como também de possibilidade de mudança. Michael grita que temos escolha. Sim, os americanos, justamente agora, puderam escolher entre o "senhor da guerra que não gosta de crianças" e o mal menor, o falso caçador de gansos, John Kerry. Aliás, diga-se de passagem, eles, infelizmente, acharam que ainda não tinham tido o bastante.

Mas esta foi a ousadia política de Michael Jackson. Atacar a guerra, não pelas mentiras de Bush ou pelos prejuízos causados aos cofres públicos, mas por negar o direito que os pacificadores do mundo se deram de matar em nome da paz. Sua ousadia artística, por sua vez, se deu, mais uma vez, na estrutura da canção. Quase 6 minutos sem um refrão propriamente dito! Que rádio vai executá-la?

Bom seria se fossem todas! Bom seria se ela tivesse ecoado em toda cabine de votação da América! A propósito, esta canção me faz lembrar de um novo documentário que será lançado quase simultaneamente ao box set no Reino Unido. O documentário, que traz a participação da obsessiva psiquiatra Carole Lieberman e do falso detetive Ernie Rizzo, ambos em sua eterna cruzada contra Michael, nos diz que não podemos entender Michael Jackson, porque sua noção de realidade é por demais distante da nossa. Ora, antes nossa realidade fosse mais próxima da dele, não é? Ao menos, em sua fantasiosa Neverland, ao contrário do nosso real Iraque, as crianças estão a salvo, até que se prove o contrário...
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Fonte: http://www.reidopop.com/mjbeats/showthread.php/28785-Artigo-Basta! – Out/2004